quinta-feira, 5 de julho de 2012

Monteiro Lobato politicamente incorreto

Monteiro Lobato politicamente incorreto


A verdadeira Tia Nastácia com um dos filhos de Monteiro Lobato, em foto de 1913.
No Natal de 1971, ganhei dos meus pais a primeira parte da obra infantil de Monteiro Lobato, que ia de “Reinações de Narizinho” a “Viagem ao Céu”. Lembro-me que comecei a ler as “Reinações” e não consegui mais parar. No dia seguinte, às dez da noite, depois de horas de leitura – que eu havia interrompido apenas uma vez, para almoçar – minha mãe, preocupada, tomou-me o livro das mãos e me mandou dormir. Afinal, eu tinha só sete anos de idade.
As descobertas que fiz naquelas páginas marcou profundamente minhas escolhas posteriores. Naqueles livros, aprendi a valorizar a curiosidade científica. O ceticismo, laicismo e racionalismo que impregnam a obra infantil de Lobato foram angulares na minha formação. Na “Viagem ao Céu”, aprendi astronomia enquanto viajava pelo espaço com Pedrinho, Narizinho, Visconde e Emília. Passei a ver beleza na etimologia graças à “Emília no País da Gramática”. Descobri a geografia nos “Serões de Dona Benta”. O “Poço do Visconde” revelou-me as maravilhas do interior da Terra. Minhas viagens imaginárias pela mitologia grega no “Minotauro” e nos “Doze Trabalhos de Hércules” foram inesquecíveis. Mas nenhum livro marcou mais a minha infância do que “História do Mundo para Crianças”, que li e reli nada menos que cinco vezes.
Lobato antecipou, em sua obra, todo o debate atual sobre como tornar lúdico o aprendizado. Era interdisciplinar numa época em que essa palavra não existia. Seu coloquialismo não soava artificial, diferente do ocorre hoje em muito do que se escreve para o público infantil. Mesmo tendo sido criados nos anos 30, os personagens infantis agiam, falavam e pensavam de forma tão natural que não havia nenhum esforço da parte de um garoto dos anos 70, como eu, para se identificar com eles.
Mas havia algo que me incomodava naquelas páginas. Eu achava Emília muito cruel. A boneca era agressiva, intolerante e egocêntrica na maior parte do tempo e, por vezes, explodia em rompantes de violência. E era racista, muito racista. Meus pais não aprovavam qualquer manifestação de racismo, nem mesmo aquelas que, em surdina, certas famílias da classe média branca reproduziam em piadas ou gracejos. Por isso, algumas passagens da obra de Monteiro Lobato deixaram-me uma impressão ruim, mas que eu acabei por relevar, fascinado pelos seus outros aspectos.
Diante da polêmica levantada, nos últimos dias, pelo pedido de parecer da Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial ao MEC em relação ao racismo na obra de Lobato, resolvi folhear a esmo alguns dos livros que tanto me encantaram na infância.
Em “Peter Pan”, por exemplo, há um trecho em que se lê: “’Só tomo leite’, explicou a linda princesa. ’Tenho medo de que o café me deixe morena’. ‘Faz muito bem’, disse Emília. ‘Foi de tanto tomar café que tia Nastácia ficou preta assim’”. Tia Nastácia, a cozinheira negra de Dona Benta, era o alvo referido dos insultos racistas de Emília. Nas “Reinações”, a boneca falante destila ódio em frases como: “Mentira de Narizinho! Essa negra não é fada nenhuma, nem nunca foi branca. Nasceu preta e ainda mais preta há de morrer!”.
Em quase todos os livros, testemunha-se o ódio gratuito de Emília contra Tia Nastácia. Gratuito, não. Emília odiava Tia Nastácia porque era ignorante, supersticiosa, beiçuda e tinha a pele escura. Em suma, porque era negra. Não que o comportamento de Emília fosse propositalmente vilanizado, caricaturizado, para, em seguida, ser denunciado. Ao contrário, Emília era a grande heroína das tramas lobatianas. Mais de um estudioso identificaram-na como o alter ego do escritor. O racismo de Emília era o racismo de Lobato.
Não poderia ter sido diferente. Lobato era um homem dos anos 1930. Naquela época, as teorias eugênicas viviam o auge do seu prestígio, não só na Alemanha nazista, onde foram transformadas em ideologia de Estado, mas também nos Estados Unidos e Inglaterra. No livro “Guerra Contra os Fracos”, Edwin Black mostrou que, nos Estados Unidos, o racismo com status de ciência era levado muito a sério. Foi até mesmo transformado em política de governo. Só depois da hecatombe da Segunda Guerra Mundial o mundo acordou do pesadelo da eugenia e as teorias racistas pseudo-científicas foram desmoralizadas de vez.
Além disso, Lobato era filho da mais tradicional aristocracia cafeeira do Vale do Paraíba e, como tal, reproduzia todos os preconceitos de seu meio social. Entre os grandes proprietários de terra, era comum, mesmo após a abolição, que mulheres negras cuidassem, como amas, dos filhos das famílias brancas. Viviam dentro da casa dos patrões/senhores, mas nunca eram consideradas parte da família. Apesar da proximidade física e emocional, eram sempre vistas como um Outro.
No Sítio do Pica Pau Amarelo, Tia Nastácia, a empregada negra de Dona Benta, alvo preferencial dos impropérios racistas de Emília, fora quem criara Narizinho, Pedrinho e a própria boneca. A personagem fora inspirada numa Tia Nastácia real, pagem dos filhos de Lobato, que aparece na figura acima.
Essa extraordinária capacidade de nutrir um sentimento de alteridade em relação aos pobres, mesmo quando se convive diariamente com eles, é o traço que, no meu entendimento, ainda hoje molda a identidade de parte da elite brasileira. É o que o Evaldo Cabral de Mello chamou de sentimento do mazombo: a sensação de viver expatriado da civilização, mergulhado na barbárie da sua própria terra, incapaz de reconhecer os nativos como iguais.
Lobato, como a maior parte dos de sua classe social, enxergava no povo brasileiro um Outro. Basta ver como descreve, em artigo escrito para o Estado de São Paulo, o personagem Jeca Tatu, estereótipo do caipira do interior e, segundo ele, o grande responsável pelas mazelas do país: “funesto parasita da terra (…) homem baldio, inadaptável à civilização”.
Na obra infantil de Lobato, o povo aparece ora como vítima, ora como algoz da sofrível condição brasileira. Muito diferente é o tratamento por ele reservado aos ingleses e americanos. Por exemplo, em “A Chave do Tamanho”, Emília, num toque de mágica, reduziu a humanidade inteira ao tamanho de baratas. No final da história, os norte-americanos foram os únicos que conseguiram reconstruir a civilização a partir da nova realidade.
O parecer do MEC constatou o racismo presente em “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, e recomendou que a obra “só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos no Brasil” (clique aqui para ler o parecer). Noutras palavras, sugeriu que os professores utilizassem criticamente a obra, procurando simultaneamente entender a mentalidade da época.
Foi o que bastou para a gritaria de veículos e articulistas conservadores. Deonísio da Silva escreveu, indignado, no Observatório da Imprensa: “tentaram proibir Monteiro Lobato! Estão sempre tentando ressuscitar a censura. Usam artifícios daqui e dali. Uma hora é o controle da mídia, outra hora é não se sabe bem que tipo de regulamentação desnecessária. O certo é que volta e meia tentam”.
O Casseta e Planeta, cada vez menos engraçado, tentou fazer humor com o episódio, mostrando a “versão politicamente correta” do Sítio do Pica Pau Amarelo, em que Tia Nastácia aparece como socióloga e o Marquês de Rabicó declara não ser mais um porco, e sim um “suíno-descendente”.
Querem que eu adivinhe o título da reportagem da próxima Veja sobre o assunto? Vai ser algo como “A praga do politicamente correto chega aos bancos escolares”, ou talvez “MEC imita Stalin e cria um index de livros proibidos: Monteiro Lobato é a primeira vítima”.
O problema, além da má fé, é que muitos desses críticos só conhecem a adaptação televisiva, feita pela Rede Globo, da obra de Lobato, na qual as referências racistas foram cuidadosamente retiradas. A maioria não se deu ao trabalho de ler seus livros, do mesmo jeito que não se deram ao trabalho de ler o parecer do MEC.
Não quero, com isso, dizer que os livros de Monteiro Lobato não devam ser usados em sala de aula. Podem ser usados desde que sofram adaptações. A obra de Lobato é encantadora, e ainda pode despertar, em muitas crianças, o mesmo fascínio pela ciência e pela leitura que despertou em mim.
A obra literária original seria reservada aos alunos do ensino médio e universitário e aos adultos, já com maturidade suficiente para contextualizá-la historicamente. Para as crianças, seriam feitas pequenas adaptações, especialmente nas falas de Emília, de modo a retirar as referências racistas.
Não seria a primeira vez que uma obra passaria por adaptações para leitores infantis. Quando criança, li uma versão infanto-juvenil das “Mil e Uma Noites”, publicada pela Abril Cultural. Só depois de adulto, ao ler uma tradução do original em árabe, descobri o quanto aquelas histórias, que me pareceram tão inocentes na infância, envolviam situações de violência, mutilações, sexo, pedofilia, estupro e incesto. A obra original, definitivamente, é desaconselhável para crianças, mas por que negar a elas o sabor das fantásticas aventuras de Aladim, Simbad e Sherazade? O próprio Monteiro Lobato traduziu e adaptou obras clássicas para o público infantil, como “Robin Hood”, “Peter Pan” e “Dom Quixote”.
Adaptação e leitura crítica não são censura. Os que, tão enfaticamente, se colocaram contra o parecer do MEC nunca leram “Memórias da Emília”, especialmente o trecho em que a boneca retruca Tia Nastácia: “Burrona! Negra beiçuda! Deus que te marcou, alguma coisa em ti achou. Quando ele preteja uma criatura é por castigo. (…) Esta burrona teve medo de cortar a ponta da asa do anjinho. Eu bem que avisei. (…). E ela, com esse beição todo: ‘não tenho coragem, é sacrilégio… ’ Sacrilégio é esse nariz chato”. Imagine uma professora lendo isso numa sala de aula com crianças negras. Imaginou? Pois é…

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